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Rua Saldanha Marinho: o Beco que devia ser patrimônio

Uma das mais antigas de Curitiba, a Rua Saldanha Marinho é também uma das mais longas do centro histórico da cidade. Ela começa ao lado da Catedral, na Praça Tiradentes, onde é exclusiva para pedestres, e desemboca na Rua Major Heitor Guimarães, no bairro da Campina do Siqueira, em trecho de cerca de 4 km. 


Atualmente, há
10 imóveis na Rua Saldanha Marinho que são Unidades de Interesse de Preservação — as UIPs (contando com a Igreja São Francisco de Paula) —, todos particulares, a maioria localizada nas primeiras quadras, ainda no centro. Não há imóveis tombados como patrimônio histórico e cultural. 


Esse número de UIPs é pequeno se comparado às 23 UIPs da Rua Barão do Rio Branco, por exemplo, mas isso de forma alguma diminui a importância histórica da Saldanha Marinho. Somente as duas primeiras quadras fazem parte do chamado Setor Histórico de Curitiba, e
os projetos públicos de preservação histórica e patrimonial pouco contemplam as antigas edificações dessa via, fato que talvez ajude a explicar a desvalorização atual (e histórica) da “Saldanha”.

O Beco


De acordo com pesquisas do historiador Giorgio Dal Molin, no início do século XIX a Rua Saldanha Marinho não tinha esse nome. Ela era uma
travessa de duas quadras, estreita e escura, que conectava a Rua Fechada (atual José Bonifácio) à Rua do Jogo da Bola (atual Dr. Muricy). Nos mapas e plantas de Curitiba dos anos de 1830 a 1860, o trecho todo já era demarcado mas seu nome jamais era citado. 


A pesquisa de Dal Molin revela que inicialmente a Rua Saldanha Marinho chamava-se
Beco do Ébano ou Travessa do Ébano. A princípio, não acreditamos que o nome tenha relação com a Rua Ébano Pereira, ou com o próprio Eleodoro Ébano Pereira (sertanejo povoador do século XVII), pois enquanto o Beco teve esse nome, a Rua Ébano Pereira chamava-se Rua Botiatuva. Pensamos que Beco se deve ao fato dela ser uma pequena travessa, e Ébano provavelmente pela escuridão do local. O fato curioso disso tudo é que, depois, o Beco do Ébano passou a ser chamado de Rua Botiatuvinha, aí sim numa clara referência à Rua Botiatuva - segundo o IBGE, Botiatuva é de origem indígena e se refere ao povoado à margem esquerda do rio Passaúna (no caso, à Curitiba).


Eram poucas as casas e sobrados do Beco do Ébano. Até o fim dos anos de 1800, a Rua Saldanha Marinho se estendia até a Praça Áurea (atual Praça da Espanha), com estrada que mais parecia uma picada no matagal. Com exceção do mais urbanizado trecho da Saldanha, no restante só havia, aqui e ali, pequenas e espaçadas chácaras,
cenário rural que contrastava com o desenvolvimento comercial visto na outra ponta. 

A Saldanha

 

No alvorecer da República, centenas de nomes de logradouros públicos de Curitiba (e em todo o Brasil) foram trocados: tudo o que remetia ao passado colonial e ao Império foi substituído por homenagens aos heróis republicanos. Nesse contexto, em 1890, a Rua Botiatuvinha teve o seu nome alterado para Saldanha Marinho, em homenagem a Joaquim Saldanha Marinho, professor e político pernambucano ligado à maçonaria, que foi membro da Constituinte de 1891. Ele ainda era vivo quando virou nome de rua (e não só em Curitiba), mas não tinha vínculos com a cidade ou mesmo com o Paraná.

 

Entre 1872 e 1900, a população de Curitiba se multiplicou em 5 vezes, sobretudo em virtude da finalização da Estrada da Graciosa e da Ferrovia Paranaguá-Curitiba, que impulsionou a chegada de migrantes. Em 1900 havia na capital mais de 50.000 habitantes, número que dimensiona o crescimento da cidade. A recém batizada Rua Saldanha Marinho exemplifica o que foi essa nova Curitiba do século XX. Aos poucos armazéns e estalagens existentes ali até então, somaram-se dezenas de novos comércios, incluindo tavernas, botequins, barbearias, farmácias, alfaiatarias, tipografia, movelaria, entre outros. No total, em poucos anos foram expedidos mais de 35 alvarás de licença de comércio de secos e molhados, todos localizados nas primeiras quadras da Saldanha Marinho.

 

Além dos empreendimentos comerciais citados, Dal Molin também levantou fontes de outros tantos endereços da Saldanha Marinho: escritórios de advocacia, engenharia, consultórios médicos e odontológicos, e até colégio, como o “Deutsche Knabenschule”, atual Colégio Bom Jesus. As casas e sobrados antigos que ainda estão de pé, aqueles sem muros, de estilo eclético e bem colados à rua, são exatamente desse período, entre os anos de 1900 e 1930, e provavelmente foram sede de inúmeros negócios.

 

Para o historiador, a Rua Saldanha Marinho só não se tornou um “segundo Largo da Ordem” porque era muito estreita, o que diminuía o fluxo de pessoas. Mas a condição de ambas, ele ressalta, eram semelhantes, já que estavam próximas à Catedral e serviam como ramal de entrada e saída da cidade. 

Rua da morte, a “quadra maldita”

 

Dessa época vem também a “má fama” da Saldanha Marinho, conforme pesquisou Dal Molin, estereótipo que possivelmente motiva, até hoje, o desinteresse pelo estudo e história da rua. Havia vários açougues e funerárias no início da via, o que significava, entre outras coisas, que o trecho ficava povoado de carros fúnebres, caixões, pessoas de luto e, ao mesmo tempo, de carroças que iam e vinham dos matadouros com animais mortos, e de pessoas sujas de sangue. Açougues e funerárias eram temidos “por lidarem com a morte”, e a morte sempre foi um tabu na sociedade ocidental.

 

Para piorar o tabu, existia até um açougue compartilhado com uma funerária. Na esquina com a Rua do Rosário ficava a luxuosa propriedade da família Falce, que lidava com a morte de bípedes humanos: a funerária tinha ao seu lado 3 prédios que serviam de “depósito de caixões e cocheira dos cavalos e carruagens dos cortejos fúnebres” . O complexo se conectava com os fundos da propriedade de Júlio Garmatter, que tratava da morte dos quadrúpedes (o açougue era de frente para a Rua José Bonifácio). Garmatter logo depois construiu o Palácio São Francisco (atual Museu Paranaense) para se colocar na alta sociedade curitibana (ou para se livrar da fama adquirida), disse o arquiteto Humberto Mezzadri, em reportagem de Pollianna Milan.

 

Pollianna Milan ainda reportou que, no século XIX, embora não se tenham fontes, também na primeira quadra da Saldanha Marinho “passavam as carpideiras, senhoras que tinham por profissão rezar pelos que haviam morrido”, justamente porque ali havia funerárias. Isso corroborou a "maldição" da rua, onde, para piorar, foram encontradas ossadas humanas (provavelmente de pessoas que foram enterradas nas cercanias da Catedral, quando ainda não havia o Cemitério Municipal).

 

Além dessas ótimas motivações levantadas, temos uma hipótese complementar para explicar o nariz torcido para a Rua Saldanha Marinho. No início dos anos de 1900, vieram à Saldanha muitos imigrantes judeus e árabes, que aos poucos somaram um número consolidado (em 1930, já havia 900 imigrantes judeus, por exemplo). Tanto que, na esquina com a Rua do Rosário, em frente à funerária, foi criada a Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná (que existe até hoje, mas em outro endereço), e logo adiante foi inaugurada a Sinagoga Francisco Frischmann, a primeira de Curitiba, onde hoje funciona um batalhão policial.

 

Assim como muitos judeus (principalmente os de origem polonesa), os árabes foram vítimas de xenofobia em Curitiba, como aconteceu na chamada “Guerra do Pente”. Até hoje, em alguns casos, eles são pejorativamente chamados de “turcos”. É possível, portanto, que esse preconceito tenha contribuído para a “má fama” da Saldanha Marinho.

Saldanha esquecida

 

Esse cenário da Rua Saldanha Marinho mudou bastante a partir dos anos de 1950, momento em que Curitiba cresceu astronomicamente e foi reorganizada por novos planos de urbanismo. A rua foi prolongada para outros bairros, onde já estava alargada e asfaltada, e passou a ser via de bairros nobres e residenciais. Enquanto isso, as históricas primeiras quadras — as duas primeiras exclusivas para pedestres e as cinco seguintes de paralelepípedos —, foram praticamente esquecidas. Como não havia políticas contundentes de preservação de patrimônios históricos, a “picareta bendita do progresso” (sábia expressão de Ruy Wachowicz) demoliu a maioria dos prédios construídos no início do século XX. Mas restaram alguns além da Sinagoga, quase todos UIPs:

 

●      o antigo Gymnasio Paranaense, ou Liceo de Coritiba (atual Colégio Estadual do Paraná), onde hoje funciona a Secretaria de Cultura do Estado do Paraná;

●      a Federação Espírita do Paraná;

●      a Igreja São Francisco de Paula;

●      o antigo Armazém São Francisco;

●      a antiga sede da Casa do Pequeno Jornaleiro (único que não é UIP);

●      e os outros 6 sobrados em estilo eclético, incluindo a funerária e a antiga sede da Sociedade Muçulmana.


Por todos esses aspectos históricos citados, é realmente de se estranhar que uma das mais antigas ruas de Curitiba não tenha uma proposta contundente de revitalização e preservação. Há ainda várias construções históricas em pé, que sequer são UIPs, ou outras mais novas mas que igualmente poderiam ser valorizadas, como é o caso do bar e restaurante Bife Sujo - muito conhecido da população curitibana e antigamente muito frequentado pelos artistas e poetas curitibanos, como Paulo Leminski.

 

Segundo Dal Molin, até houve tentativas de preservação e valorização, como a que defendia o poeta Paulo Leminski: aumentar o trecho exclusivo para pedestres da Saldanha Marinho, aos moldes da Rua XV. Ou a que foi proposta pelo IPPUC, de reformar as primeiras quadras. Também existiu um projeto da prefeitura chamado Revivendo Curitiba. Todos foram engavetados antes mesmo de sair do papel. Hoje, existe uma proposta, ainda incipiente de reforma da Saldanha junto com a Rua Prudente de Morais. Vejamos o que acontecerá, pois o fato é que a Rua Saldanha Marinho nunca entrou nos programas públicos de preservação.

 

Caso não sejam preservadas, logo a história e a memória da Rua Saldanha Marinho, o antigo Beco do Ébano, novamente serão solapadas pela picareta bendita do progresso.

Abaixo, fotografias de alguns prédios históricos da Rua Saldanha Marinho que não são UIPs; fotografias de Letícia Geraldi Ghesti:

Texto e pesquisa de Gustavo Pitz


Fonte de pesquisa:  


Giorgio Dal Molin. "DO BECO DO ÉBANO À RUA SALDANHA MARINHO: SÉC XIX A 1943 ". Monografia em História, UFPR, 2017.

https://pergamum.curitiba.pr.gov.br/vinculos/000090/000090c7.pdf



Artigo de  Pollianna Milan:

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/uma-quadra-maldita-na-saldanha-2ulhb58o02mg6gxa6s85oa1qm/


Dissertação de mestrado sobre a Casa do Pequeno Jornaleiro, de Nicolle Taner:

http://www.faed.udesc.br/arquivos/id_submenu/2666/nicolle_taner_de_lima___final.pdf

 https://www.fotografandocuritiba.com.br/search?q=saldanha+marinho


http://www.circulandoporcuritiba.com.br/search/label/Rua%20Saldanha%20Marinho?updated-max=2014-12-11T08:30:00-02:00&max-results=20&start=17&by-date=false



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