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Imigração árabe em Curitiba: entre o esquecimento e o pertencimento


A presença dos árabes no Brasil só começou a ganhar maior atenção em estudos nos últimos 30 anos e, no geral, seus descendentes são vítimas de preconceito, quando não esquecidos. Ou seja, estamos diante de um fato histórico ocultado ou até mesmo negligenciado


Quando se pensa no Paraná, essa amnésia é ainda mais grave. Com exceção da cidade de Foz do Iguaçu, onde a população sírio-libanesa é bastante reconhecida, os demais municípios pouco valorizam a cultura oriental enquanto formadora de sua trajetória.


Várias das cidades paranaenses não conheceram originários do oeste asiático e norte africano, mas outras tantas, como Curitiba, foram e ainda são destinos de muitos árabes, sejam eles cristãos ou muçulmanos.


Por isso, o objetivo deste artigo é reconhecer a imigração desses povos ao Paraná, mais especificamente à Curitiba, e a sua importância na história local. 


a diferença de conceitos


Nem todo árabe é muçulmano, e nem todo árabe é asiático. Árabes são os originários dos países falantes de língua árabe e que integram a “Liga dos Estados Árabes”, isto é: Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Comores, Djibuti, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Qatar, Síria, Somália, Sudão, Tunísia e a região considerada Palestina.


Nem todos esses países são majoritariamente muçulmanos ou asiáticos, como também há países de fora desta lista que possuem maioria islã, como é o caso da Turquia e do Irã, por exemplo. 


A chegada


O processo migratório de árabes ao Brasil pode ser dividido em 4 fases: a primeira entre 1880 e 1920; a segunda entre 1921 e 1940; a terceira entre 1941 e 1970; e a quarta e última entre 1971 e 2000.


A diferença básica entre essas etapas é a seguinte: nas duas primeiras, a maioria era de origem libanesa e cristã; nas duas últimas, a maioria era muçulmana, mas oriunda de diversas nacionalidades. Nestas, também, o número de migrantes foi significativamente maior. No Paraná, é possível que os primeiros árabes tenham chegado em 1890.[1]


Por conta do registro de imigração, entretanto, é difícil saber o número exato de quantos imigrantes árabes vieram ao país e ao Paraná. Isso porque até 1934 só era considerado “imigrante” quem vinha na 3ª classe de um navio aportado no país. Ou seja, o registro de passageiros de classes sociais mais abastadas, mesmo que estrangeiros, não era feito.


Além disso, até a Segunda Guerra Mundial, não era obrigatório registrar a religião do estrangeiro. No que se refere aos árabes, isso foi um problema porque não os diferenciou. Assim, todos os que aqui chegaram eram legalmente reconhecidos simplesmente como “turcos”, pois a maioria possuía o passaporte do Império Turco Otomano (que basicamente dominou todos os locais de língua árabe até 1922, data de sua dissolução). 


[1] Um dos principais responsáveis pela primeira vinda de imigrantes árabes foi o imperador Dom Pedro II. Ele viajou duas vezes a países árabes, em 1871 e 1876. Sua ida influenciou muitos árabes cristãos a migrarem ao Brasil. O imperador não foi com esse intuito de incentivar a imigração, mas popularizou o Brasil na região, principalmente entre os cristãos.

 

Dito isso, vamos ao problema: como identificar esses imigrantes? A historiografia arranjou uma solução. Para identificar a religião, os pesquisadores analisaram o nome do estrangeiro “turco”. Isso porque os árabes muçulmanos quase sempre concedem nomes aos seus filhos que correspondem à sua religião. São esses:


- o de Maomé e suas variantes (Muhammad, Mohammad, Muhamed, Mohamed, Ahmad, Ahmed, Hamaid, Hamud, etc.).

- o dos companheiros de Maomé (Ali, Omar, etc. ).

- o dos descendentes de Maomé (Hassan, Hussein, Reza, Haidar, Ossama, etc.).


Além disso, entre os muçulmanos também é comum dar a seus filhos nomes de profetas das regiões monoteístas: Mussa (Moisés), Issa (Jesus), Ibrahim (Abraão), Yaqub (Jacó), Daud (Davi), Yahia (João), entre outros.


Assim, os árabes que fogem a essa regra são considerados cristãos.


Para descobrir o país de origem, porém, foi necessário buscar a cidade de nascimento dos imigrantes, tendo em vista sua localização após a dissolução do Império Turco Otomano (o Líbano, por exemplo, só se tornou independente em 1943, e a Síria em 1946; ambos faziam parte do Império e depois foram colônias europeias até a década de 1940). 


Imigração árabe para Curitiba em números


Feito isso, vamos aos dados estatísticos. A imigração dos árabes, apesar de ser espontânea, fragmentada, esparsa e nunca incentivada pelo governo brasileiro, foi a sétima mais numerosa no país até 1950. Isso porque, da década de 1920 em diante, houve um crescente significativo de pessoas vindas principalmente do atual Líbano e da Síria. [2]


No Paraná, a maioria dos imigrantes árabes, até 1943, era cristã e se concentrava em Curitiba. Desses, mais de 70% era originaria do Líbano. Insatisfeitos com o poder concedido aos muçulmanos durante o Império Turco Otomano, e pela pobreza durante as décadas em que o Líbano foi colônia francesa, muitos árabes da região libanesa de Bekaa vieram ao Brasil. Seus destinos eram, principalmente, São Paulo e Rio de Janeiro.


Depois, muitos migraram para Curitiba. Eles vieram, sobretudo, pela promessa de crescimento que os governos curitibanos faziam à época, e pelo bom desenvolvimento urbano e comercial visto na capital.


Esse foi o caso das famílias Labsh e Karam, por exemplo, que compraram residências ao redor da Praça Generosos Marques logo no início do século XX. Junto a elas, outras famílias adquiriam propriedade na região central, como na Rua Riachuelo, Monsenhor Celso e ao redor das Praças Tiradentes e Generoso Marques. Em sua maioria, o perfil desses imigrantes era urbano e voltado ao comércio. Isso explica o motivo de se concentrarem no centro e se dedicarem à venda de produtos. 



[2]Abaixo estão duas tabelas feitas de acordo com os estudos demográficos de Murilo Meihy. Os dados nelas presentes nos dão a dimensão do impacto nacional e regional da imigração árabe para o Brasil.


Vale destacar, porém, que nesse primeiro momento quem se deslocou foram os homens árabes, geralmente sozinhos (2/3 daqueles que se naturalizaram até a década de 40 eram homens). Depois de estabelecidos, eles então compravam passagens e financiavam a vinda e a residência de outros conterrâneos, família e amigos. Por isso, a chegada deles foi fundamental para a formação de redes de sociabilidade em Curitiba, que vão permitir a recepção e a inserção dos que vieram nas fases seguintes. 


E como nem toda história é feita de sucessos, é sempre importante lembrar que muitos desses imigrantes não conseguiram se manter em Curitiba. Seja pela falta de condições materiais e/ou pelo preconceito sofrido, muitos foram a outras cidades ou mesmo voltaram à terra natal. 



A 2ª chegada


O Pós-Segunda Guerra Mundial mudou em muitas coisas a imigração árabe. A maioria dos países árabes se libertaram do colonialismo europeu, o que significou, porém, intensas lutas pelo poder nesses locais. Lutas, é claro, que envolviam religião. Foi assim no Líbano e na Síria (e assim é até hoje).


Diferentemente do período anterior, os governos nacionais repartiram as posições de prestígio entre cristãos e muçulmanos, para tentar arrefecer os ânimos. Mas a medida foi insuficiente. Desde o final da década de 1940, milhares de árabes muçulmanos deixaram suas pátrias em busca de melhores condições de vida, sobretudo porque, embora fossem a maioria religiosa de seus locais, eles se viam desprestigiados.


Nesse período, o Paraná foi um dos principais destinos dos árabes. Primeiro, a cidade de Curitiba. Depois, a partir da década de 70, Foz do Iguaçu. Segundo Nasser, ele encontrou cerca de 60 residentes árabes muçulmanos na capital entre 1953 e 1983, sendo que 60% destes morava no centro. Já os dados do IBGE mostram que, em 1991, em Curitiba havia cerca de 1 mil muçulmanos (em Foz já havia mais de 1.500).


Esse foi o caso, por exemplo, de Ahmed Najar e sua família (os envolvidos na Guerra do Pente), que vieram à Curitiba, junto com outros libaneses, conhecidos e familiares, logo depois da Segunda Guerra. Aqui, encontraram parentes que vieram nas primeiras fases migratórias e que abriram caminho a eles.

Consequências da intensificação da imigração árabe para Curitiba


Existem relatos da boa recepção dos curitibanos aos árabes. A dissertação de Omar Nasser Filho nos prova isso. Entretanto, o que outras pesquisas também nos mostram é que a xenofobia contra os árabes foi algo presente na sociedade curitibana.

 

A começar pelo modo como eram chamados. Com raras distinções, todos os árabes eram chamados de “turcos”. Por um lado, isso é resultado da forma como o registro de imigração foi feito, sem dúvidas. Mas, por outro lado, “turco” era um termo pejorativo que botava num mesmo balaio uma gama enorme de árabes com nacionalidades distintas (e não custa lembrar que, na verdade, os turcos não são, atualmente, considerados árabes).


Trocando em miúdos, “turco” era uma forma de diminuir o “Outro”.


Algo que deixa explícito esse sentimento de repulsa é um trecho de um artigo do historiador Ruy Wachowicz:



"apareceu uma ameaça à estética da rua que era o 'cartão postal' curitibano: o início da invasão dos negociantes sírios. Eles já dominavam o comércio de roupas e quinquiliarias nas praças Generoso Marques e Tiradentes [...] Tentaram então estabelecer-se na aristocrática rua XV de Novembro. Um desses varejistas conseguiu instalar-se ao lado do Louvre, em frente ao Mignon. Pendurou na porta alguns acolchoados, meias ordinárias, camisetas brancas, sacolas e outras bugigangas. A elite curitibana reagiu e conseguiu que a prefeitura fechasse a 'tenda ridícula' no coração da cidade."



Pois é. Esse artigo publicado na extinta revisa Nicolau exemplifica a “xenofobia à curitibana”, que se intensificou à medida que a comunidade árabe foi crescendo na cidade. Por curiosidade, o antigo "Louvre" e o "Mignon" ficavam na altura da atual Galeria Ritz, no calçadão da XV.


No centro, o comércio já era, em grande parte, realizado pelos árabes. Eles andavam pelas ruas, montavam camelôs, vendiam nas calçadas, organizavam sociedades e cultos religiosos, circulavam ao redor dos espaços de poder e até mesmo constituíam lojas de comércio em espaços de poder. Um "ultraje" para a elite curitibana à época.


Não à toa, portanto, essa xenofobia fica mais explícita na década de 50, algo evidenciado pela Guerra do Pente - conflito que teve como uma das principais motivações a xenofobia contra um comerciante árabe. 


INSTITUIÇÕES ÁRABES EM CURITIBA


É fundamental dizer que os imigrantes e descendentes árabes produziram a sua própria história na cidade de Curitiba. Eles fundaram uma comunidade coesa e que se constitui, ainda hoje, como uma das mais populosas etnias estrangeiras da capital.


A partir da década de 1950, com o aumento significativo da chegada de árabes, a presença de suas tradições ficou mais nítida. Primeiro, em 1957, foi criada a Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná, na Rua do Rosário (que existe até hoje, mas em outro endereço). Provavelmente, a Sociedade foi fundada logo depois do Clube Sírio-libanês, do qual se tem notícias a partir de 1956 (ficava na Rua Jose Loureiro).


Depois, em 1962, foi inaugurada a Igreja Ortodoxa de Antioquina São Jorge, nas Mercês. Ela foi e é o principal ponto de contato dos árabes cristão em Curitiba. Lá, inclusive, ainda há celebrações em árabe.


Em 1969, a comunidade islã inaugurou a Escola Islâmica do Paraná e, três anos depois, enfim finalizou a construção de sua mesquita, a Mesquita Imam Ali, em 1972. Por fim, cabe destacar a criação do Cemitério Jardim de Allah, 1984, na CIC (Cidade Industrial de Curitiba).


Mais recentemente, em 1994, foi criada uma outra sociedade, de origem não-muçulmana. Trata-se da Sociedade Árabe de Beneficência, no Água Verde.


Essas instituições árabes, muçulmanas e cristãs, reforçam a significativa inserção e presença árabe em Curitiba, bem como sua contribuição ao desenvolvimento econômico e, principalmente, cultural da cidade. Por isso, a sua história merece ser ouvida e contada.

Texto e pesquisa: Gustavo Pitz e Gabriel Brum Perin


Para citar: PITZ, Gustavo. "Imigração árabe em Curitiba: entre o esquecimento e o pertencimento". Turistória, Curitiba, 2020.  Disponível em: <http://turistoria.com.br/imigracao-arabe-em-curitiba-entre-o-esquecimento-e-o-pertencimento>.


Referências


https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/13753/omar.PDF?sequence=1


http://www.hamsa.cidehus.uevora.pt/hamsa_n1/publications_n1/2MurilloArabia.pdf


https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/36804/R%20-%20D%20-%20JOAO%20BOSCO%20OLIVEIRA%20BORGES.pdf?sequence=3&isAllowed=y


https://www.facebook.com/groups/417557358409468/permalink/1263288683836327


https://www.fotografandocuritiba.com.br/2018/11/memorial-arabe.html


https://www.bpp.pr.gov.br/sites/biblioteca/arquivos_restritos/files/migrados/File/af_nicolau55.pdf

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