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“Curitiba Capital Ecológica”: será que somos?


Curitiba já recebeu diversas e elogiosas alcunhas: “Cidade modelo”, “Capital europeia”, sendo mais famoso o selo de “Cidade verde” ou “Capital ecológica”.

 

A cidade é reconhecida e premiada internacionalmente por sua sustentabilidade. Em 2015, foi escolhida como a melhor cidade do país pelo prêmio da Agência Austin Ratings e da revista IstoÉ; no mesmo ano, Curitiba foi considerada a mais verde cidade da América Latina, de acordo com um relatório da Siemens.

 

Mas, por que Curitiba é assim chamada, e até que ponto esses títulos fazem sentido ambientalmente falando?



Cidade verde

 

Em 2012, Curitiba celebrou mais um aumento no número de "áreas verdes" na cidade. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente, naquele ano havia 64,5m² de vegetação por habitante, sendo 26% do território coberto por maciços ambientais - números que se mantêm atualmente. Até 2000, essa taxa era de 51m² por habitante, sendo que até então a cobertura verde não chegava a 18%. Esses números continuam a crescer, pois segundo a própria prefeitura de Curitiba, existe a meta de plantar mais 500 mil mudas de árvores nativas até o fim do ano de 2022.

 

Ao todo, a “capital ecológica" possui 21 parques, 15 bosques, 451 praças e 444 jardinetes, entre outras áreas. Além delas, em 2016 foi inaugurada a "Estação Ecológica Campos de Curitiba - Teresa Urban”, no bairro Alto Boqueirão, que é uma reserva ambiental protegida pelo município. A Estação homenageia Teresa, que foi membro da resistência à ditadura, ativista, jornalista e ambientalista, e se configura como a única reserva de Mata Atlântica de Curitiba com vegetação nativa.

 

Esse investimento em recuperação e preservação da vegetação no espaço urbano fez de Curitiba uma das cidades com maior proporção de áreas verdes por habitante, ultrapassando e muito o mínimo requisitado pela ONU, que é de 18m² (36m² seria a medida ideal). Em São Paulo, por exemplo, há 14m², característica que a fez ser chamada de “selva de pedra”.

Carro é o cigarro do futuro

 

Jaime Lerner foi um personagem importante na construção de todos esses títulos, e talvez seja o protagonista da popularização do slogan “Capital Ecológica”. Ele sempre dizia que o “o carro é o cigarro do futuro”, e por isso criou políticas em sua gestão que incentivaram a utilização de outros meios de transporte, como o ônibus público, ao invés do transporte individualizado.

 

Estando no poder, uma das primeiras medidas de Lerner foi o fechamento e calçamento da Rua XV de Novembro, em 1972, tornando-a exclusiva para pedestres. Embora tenha sofrido forte resistência dos comerciantes locais, a iniciativa foi fundamental para acabar com o insustentável trânsito da região, e ironicamente aumentou o ganho do comércio local, que então era mais facilmente acessado.

 

Ao contrário de outras capitais, em Curitiba, Lerner ignorou o metrô e investiu nos ônibus: até por motivos hidrogeológicos. Criou vias de uso exclusivo do transporte público e, posteriormente, estações em forma de tubo, onde os passageiros compravam suas passagens e esperavam o ônibus. Ônibus de diferentes linhas passavam a cada minuto. Esse sistema ficou conhecido como BRT (sigla em inglês para “Transporte Rápido por Ônibus”). Segundo dados de 2016, cerca de 300 cidades espalhadas pelo mundo usam esse modelo.

 

Com a implantação do BRT, Lerner defendia que o transporte coletivo deveria ser o principal meio de locomoção dos curitibanos, sendo o trajeto entre os bairros e o centro mais facilmente realizado com ônibus do que com carros — o que representava a diminuição das emissões de gás carbônico, dos acidentes de trânsito e do tráfego intenso. Em sua utopia, os moradores poderiam se deslocar a trabalho, turismo e comércio de ônibus para então transitar entre esses diferentes locais à pé (pedestrianização). 


Capital ecológica: projeto de padrinho para afilhado

 

Depois de uma gestão agraciada entre 1971 e 1974 (ARENA), e de uma nova administração bem vista entre 1979 e 1983 (PDS, sucessor do ARENA), Jaime Lerner chegou pela terceira vez ao executivo de Curitiba em 1989, mas desta pela via democrática (PDT). O político, após 15 anos em partidos conservadores, ironicamente ascendeu ao cargo pelo partido de Leonel Brizola, um dos maiores opositores da Ditadura Civil-Militar.

 

Como prefeito novamente, Lerner encontrou uma situação bem diferente daquela vivenciada nas outras duas gestões. Curitiba havia crescido abruptamente entre 1971 e 1989, passando de 700 mil habitantes para 1.3 milhão. Além disso, a crise econômica e social dos anos 80 secou os cofres públicos da cidade e os investimentos federais. Nesse período, também, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, IPPUC, responsável pelo planejamento e execução de grandes obras públicas na década de 70, havia perdido espaço dentro da prefeitura.

 

Apesar disso, o IPPUC continuava influente. Desde a década de 80, seus esforços se deslocaram do ultrapassado modelo de projetos em arquitetura pesada, “para projetos pontuais, como parques, monumentos e atrações urbanas”.

 

De um lado, essa mudança de enfoque se deu pela tentativa de consertar as grandes obras de urbanismo realizadas até então, que secundarizaram a valorização e preservação do meio ambiente em Curitiba; além disso, a nova política do IPPUC tentava dar alguma resposta às pautas do movimento ambientalista no Paraná, que cresceu amplamente nos anos 80.

 

Por outro lado, a transformação do IPPUC também esteve vinculada a novidades do ponto de vista ideológico. Conforme salientou Dennison de Oliveira, nas décadas de 60 e 70 o Instituto tinha uma face modernista, no sentido de que via o espaço urbano como um objeto a ser planejado e transformado. Já na década de 80, ele passou a adotar uma perspectiva pós-moderna, sendo seus projetos de urbanismo pautados por princípios estéticos, sem que eles tivessem alguma utilidade nítida.

 

Assim, com os recursos da prefeitura centralizados na Secretaria de Meio Ambiente, Lerner seguiu o caminho da política ambiental e estética, e a utilizou para fins de marketing político. Em sua gestão, ele priorizou o combate à poluição, investiu em ciclovias, criou o famoso Jardim Botânico, reforçou os cuidados do protagonista Parque Barigui (que ele havia criado em 72), fundou a Universidade Livre do Meio Ambiente, inaugurou a Ópera de Arame, reabriu a Pedreira Paulo Leminski, transformada em espaço para eventos, e deu início ao programa “Curitiba Capital Ecológica”.

 

Por meio de uma vigorosa propaganda e investimentos em áreas verdes grandiosas, o então prefeito difundiu a imagem da “cidade verde”. Em pouco tempo, Curitiba pulou de 0,5 para 50m² de área verde por habitante.

 

Também através desse programa, Lerner foi o pioneiro na criação de um sistema de seleção e reciclagem de resíduos sólidos urbanos, o famoso “lixo que não é lixo”. Com ele, Curitiba reduziu o ônus dos aterros sanitários, e passou a dar a destinação correta aos resíduos.

 

Desse modo, em 1989 o programa “Curitiba Capital Ecológica" recebeu o prêmio de Meio Ambiente da ONU, sendo o seu autor, Lerner, premiado também internacionalmente. A “coleta seletiva” e a "valorização do meio ambiente” se tornaram modelos de urbanidade.

 

Nas eleições municipais de 1992, Lerner conseguiu eleger seu afilhado político, o também urbanista (mas engenheiro) e membro do IPPUC, Rafael Greca de Macedo (PDT). Greca deu continuidade ao projeto ambiental e estético de seu padrinho, pois criou dezenas de bosques e parques, como o Tingui, o Tanguá.


Capital ecológica, mas nem tanto

 

Embora bonito e aparentemente eficiente, o programa “Curitiba Capital Ecológica'' guarda inúmeros problemas e contradições.

 

O primeiro problema é de sentido econômico e ambiental. Desde o início, o transporte público foi administrado por duas grandes empresas aliadas ao poder público. Com isso, o custo da passagem sempre foi elevado, sendo o serviço prestado incondizente com o preço cobrado dos usuários. Isso afugentou as pessoas do transporte coletivo, e muitas delas continuaram a apostar em veículos individualizados. 

 

Não à toa, Curitiba ainda é uma das cidades do mundo em que mais se mata no trânsito, e ela também é a que tem mais automotores por habitante no Brasil (8 carros para cada 10 pessoas). Ou seja, as emissões de gases do efeito estufa somente aumentaram.

 

Falando em meio ambiente, Curitiba está longe de ser um exemplo na preservação ambiental. Na década de 90, enquanto se veiculava o slogan “Cidade Ecológica", o Índice de Qualidade das Águas (IQA), desenvolvido pela National Sanitation Foundation (USA), constou que praticamente a totalidade dos cursos hídricos de Curitiba estava com a qualidade da água ruim. Foram analisados os rios Atuba, Bacacheri, Barigui, Belém, Iguaçu, Ivo, Ribeirão dos Padilhas e mais três córregos, e, dos 20 pontos de análise, 15 estavam em condições degradantes. Atualmente, no centro da cidade, onde todos os rios estão canalizados, a poluição não é aparente, mas, nas periferias, onde a estética política não chega, a quase podridão das águas é nítida.

 

Além disso, embora os dados apontem que o título de “cidade verde” ainda seja justo, é necessário colocar mais algumas variáveis nessa equação, ou melhor, mais algumas cidades... O verdadeiro título de capital ecológica do Brasil, na verdade, é de Goiânia, com uma área estimada de 94m² de área verde por habitante, atrás apenas de cidades como Edmonton, no Canadá (100m² de área verde/hab.). No Paraná, Curitiba também não está no topo do pódio das cidades mais arborizadas. Por aqui, a merecedora do título é Maringá, que após um grande investimento em arborização urbana, conseguiu transformar o clima do centro da cidade, tornando-o mais agradável e com temperaturas mais amenas.

 

A área verde de Curitiba, inclusive, merece uma discussão melhor. Há cerca de 20 anos, pesquisadores da UFPR colocaram em xeque a quantia dita pela prefeitura, de que em Curitiba havia 51m² de área verde por habitante. Segundo eles, não foi publicado o método de contagem, nem mesmo os critérios de cálculo. Assim, em análise própria da universidade, foi constatado que a metragem pode ser significativamente menor do que a apresentada, isso por conta da região periférica, onde os índices de área verde são pequenos (com exceção do Umbará e Ganchinho, zonas rurais). Essa, inclusive, é uma grande crítica feita pelos ambientalistas na cidade, que destacam a excessiva centralidade de parques e bosques, majoritariamente presentes nas regiões e bairros mais nobres da cidade. Vale deixar claro, também, que grande parte das espécies utilizadas no plantio das áreas verdes são exóticas, ou seja, não contribuem para a preservação de espécies nativas da Mata Atlântica.
 

Qual Curitiba, nesse caso, é a verde e ecológica? Aquela elitizada? Ou a Curitiba real, que preservou somente 1% de sua mata nativa?

 

Por fim, cabe destacar algo implícito nos parágrafos anteriores. Quando nos referimos à “Capital Ecológica", “cidade verde” ou mesmo “cidade modelo", reproduzimos uma imagem recortada e muito parcial de Curitiba; esses títulos trazem consigo uma ideologia de poder, que molda a realidade de acordo com interesses, ocultando-a, negligenciando-a e distorcendo-a. Por isso, todas as contradições históricas, e que se mantêm atuais, não são explicitadas nessas narrativas.

Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz

Fonte de pesquisa:  


 Dennison de Oliveira. “Curitiba e o Mito da Cidade Modelo”. Editora da UFPR, 2000.



http://www.mobilizacuritiba.org.br/2014/04/01/le-monde-no-brasil-curitiba-ex-cidade-modelo-na-america-latina-esta-lutando-para-se-reinventar/

 

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitiba-pode-recuperar-o-titulo-de-capital-ecologica-blq7k6uj361hcltfi930j97wu/

 

https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/30/politica/1467311191_496018.html

 

https://medium.com/@jornal4periodopucpr/curitiba-%C3%A9-realmente-uma-capital-ecol%C3%B3gica-23556d3891b8

 

https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/123778/119968

 

https://mandatogoura.com.br/a-visao-excludente-da-cidade-nao-e-um-acidente-e-uma-opcao-politica-diz-goura/

 

https://www.curitiba.pr.leg.br/informacao/noticias/zoneamento-de-curitiba-surge-o-plano-diretor-1960-2019

 

https://ippuc.org.br/mostrarpagina.php?pagina=240&idioma=1&titulo=&teste=

 

https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/64189/R%20-%20D%20-%20LUIZ%20HENRIQUE%20CALHAU%20DA%20COSTA.pdf?sequence=1&isAllowed=y

 

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitiba-eleva-ainda-mais-sua-area-verde-76ui931kfe8o0depd7m2kqn2m/

 

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/familia-controla-quase-70-dos-consorcios-de-onibus-de-curitiba-48bjjps6lq4xxxu4iewa3v4ge/

 

https://www.bandab.com.br/cidades/com-frota-de-carros-igual-a-75-dos-habitantes-especialista-diz-que-curitiba-esta-perto-do-limite/

 

https://www.brasildefatopr.com.br/2019/03/29/aniversario-de-curitiba-de-cidade-modelo-ao-ranking-das-mais-desiguais-do-mundo


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