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Armazém Santa Ana

Quanto mais os novos tempos avançam, mais o sentimento de nostalgia se fortalece. Locais e estabelecimentos que antes eram absolutamente comuns, hoje são o pouco que restou do passado. Grande é o valor depositado neles, já que se tornam, com o passar dos anos, cada vez mais extraordinários.

 

Esse é o caso do Armazém Santa Ana, estabelecimento comercial fundado em 1934 no bairro Uberaba, em Curitiba. Por muitos anos, o local foi um entre tantos do mesmo ramo, mas hoje ele é um dos únicos que resistiu às intempéries do tempo, mantendo a mesma arquitetura e tipo de comércio. São muitos os clientes, fiéis e turistas, que ali chegam para relembrar os idos de uma Curitiba rural e provinciana.

 

A história do Armazém Santa Ana começou com a chegada do imigrante ucraniano Paulo Szpak à Curitiba. Nascido em 1910, na Ucrânia, aos 19 anos deixou sua terra natal para desembarcar no Brasil. Na época, a Ucrânia passava por intensas crises político-econômicas, em virtude dos efeitos da Primeira Guerra Mundial, que devastou o país, e das disputas entre Polônia e União Soviética. Após se fazer independente por um curto período de tempo, o território da Ucrânia foi dividido entre os poloneses e os soviéticos, na chamada Paz de Riga, em 1921.

 

Diferentemente de muitos imigrantes ucranianos que vieram ao Paraná, Paulo Szpak tinha vocação para trabalhar na parte mais urbana da cidade. Ele veio sozinho à Curitiba, onde passou a morar no alto do bairro Uberaba, na região conhecida como Corte Branco. Conta-se que, além de trabalhar como construtor de estradas e sapateiro, ele fazia reparos em residências para uma família do bairro. Aos poucos, juntou dinheiro para comprar madeira de imbuia, advinda de uma antiga construção que veio abaixo, e com ela construiu, nas margens do seu terreno, um armazém de secos e molhados.

 

Nessa altura, Paulo já era casado com a imigrante polonesa Julia Zielonka, mulher que foi fundamental para a idealização e manutenção da propriedade da família.

 

O chamado Armazém Santa Ana foi inaugurado em maio de 1934, de frente para a única estrada que ligava Curitiba a São José dos Pinhais e também a Santa Catarina (atual Avenida Senador Salgado Filho), quando tudo ainda era mato. O nome do armazém se deve ao fato de que Paulo era devoto de Santa Ana - mãe da Virgem Maria e avó de Jesus Cristo.

 

A estrada era de chão batido. Uma ida ao centro de Curitiba para compras e vendas poderia levar um dia inteiro para quem morava na zona rural. A oferta de secos e molhados nas áreas periféricas da cidade também era pequena. Por isso, a localização do Armazém foi estratégica. Szpak conseguiu uma freguesia com os moradores da região, viajantes e tropeiros.


Na ida ao centro de Curitiba, o Armazém era parada para hidratação de cavaleiros, agricultores e carroças. Na volta, ao fim do dia, era destino obrigatório para alimentação, para tomar uma cachacinha e para comprar mantimentos. Vendia-se de tudo um pouco, desde penico e panelas de ferro até farinha e aveia.


Paulo Szpak e Julia moravam nos fundos do armazém. No terreno de 15 mil metros quadrados, o casal e os três filhos - Pedro, Vitoldo e José - criavam porcos e galinhas e cultivavam parreiral. O salame, o chouriço, os ovos, o vinho e o vinagre para a produção de pepino azedo eram para consumo próprio, mas no armazém não se negava a venda de pratos da comida caseira a quem pedia. “As comidas servidas eram coisas que a própria família tinha por hábito consumir. As pessoas iam ao armazém, os viam lanchando e sugeriam que eles fizessem para vender”, nos contou Ana Szpak, neta de Paulo e Júlia.


Com o envelhecimento do casal, foi o filho caçula, Pedro, que tomou a dianteira dos negócios e cuidou dos pais. Sua esposa, Orlanda Peters, era de origem alemã e ajudou a incrementar o cardápio e os costumes da família; muitas das receitas ainda elaboradas no Armazém, como o pierogi, o bolinho de carne, a carne de onça, alguns embutidos e pratos harmonizados com cerveja, foram trazidas por ela. Com Pedro e Orlanda, o Santa Ana cresceu bastante, pois foi ampliada a quantidade de produtos ofertados, que começaram a ser dispostos do lado de fora, na varanda — tradição que se mantém.


Se não havia mais tantos tropeiros, com o casal o Armazém ganhou ainda mais sentido comercial: um lugar onde de tudo se vendia: ferramentas, móveis, utensílios, peças, conservas, bebidas, etc. Graças a Orlanda, o estabelecimento também passou a vender, oficialmente, pratos quentes que ela elaborava.


Depois do falecimento de Pedro, quem hoje administra o Armazém é Ana e seu irmão Fábio, dois dos quatro filhos de Pedro e Orlanda. Em conversa com nós do Turistória, Ana contou sobre sua experiência com o armazém. Ela começou a ajudar nos trabalhos com cerca de 13 anos de idade, quando morava com a família numa casa atrás do Armazém. Todos da família de alguma forma contribuíram no negócio.


Ana explicou melhor a mudança no Armazém feita pelos seus pais e depois por ela e seu sócio. Ela disse que, há cerca de 30 anos, o armazém se viu diante de uma nova demanda com a urbanização da cidade e proliferação dos supermercados. Por isso, eles ampliaram o Santa Ana para se tornar também um bar. No espaço em que outrora viveram os pais e avós de Ana, agora há mesas em que os clientes se sentam e são servidos com bebidas e deliciosos pratos típicos da casa. 

Apesar das mudanças do Armazém (boa parte do terreno comprada por Paulo foi vendida pelos herdeiros, inclusive), a quase centenária construção de madeira continuou a mesma, bem como a qualidade dos produtos e a forma de atendimento. A cor alaranjada se manteve, as paredes, prateleiras e o balcão de madeira também, todos “originais de fábrica", bem como a diversidade de compotas, embutidos e produtos coloniais, além dos tradicionais penicos e tamancos vendidos.

 

É justamente por conta desse clima rústico e nostálgico, somado à boa comida, que o Armazém Santa Ana é tão desejado. Há clientes de mais de 60 anos, outros mais recentes, além de turistas do Brasil e de fora, todos atraídos pela identidade do local. São muitos os que não saem de lá sem levar algum produto característico do Armazém.


Tamanha procura tem uma explicação muito mais que plausível. Além de serem pouco encontrados em outros lugares, os pratos do Santa Ana são, há décadas, preparados pelas mesmas pessoas. Orlanda ensinou suas receitas, truques e temperos, que hoje são perpetuados pela terceira geração de cozinheiras do Armazém.

 

Minha tia Orlanda ensinou as receitas para a minha avó Mafalda, que ensinou a minha mãe e depois a mim. Mantemos até hoje o mesmo tempero, não mudamos nenhum ingrediente. Até as carnes que compramos cortamos aqui para manter a qualidade, nosso padrão e segredos”, contou a atual cozinheira Franciele Peters Cunha, em reportagem para Silvia Bocchese de Lima.

 

Entre as iguarias do Armazém, está, em primeiro lugar, o famoso pepino azedo embebido em vinagre de folha de parreira, receita do avô Paulo, mantida por Fábio Szpak. Entre novembro e março, é grande a procura pelo produto, assim como é grande a demanda pela Carne de Onça do Santa Ana. O pierogi, por sua vez, é o queridinho, enquanto a feijoada, o pão com bolinho de carne e o joelho de porco também têm seus adeptos.



Da última vez que fomos lá, provamos a chapa de queijo com linguiça blumenau, que estava deliciosa. Vale lembrar que há pratos vegetarianos e infantis, além de cerveja gelada de todo tipo. Outro produto que leva fama e lembra as origens da família é uma cachaça - a cachaça de gebrusca, erva polonesa tradicional.

 


Esse elevado número de clientes que passam diariamente pelo local acaba gerando muitas histórias curiosas, que têm o armazém como palco. Uma delas — e que Pedro presenciou e costumava contar — era a seguinte, nos relatou Ana:

 

"uma vez que chegou dois caras mal encarado, mal encarado... Na época vendia coisa de mercearia, né. Mas olha ele falou assim que dava medo. Os dois cara chegaram daí ele pensou "Ah, vão me assaltar, tô ferrado". Não, eles pediram uma lata de leite condensado, diz que fizeram um buraco e os dois [faz barulho deles sugando o leite condensado]. [risos]"

 

Outra história “sinistra” que Ana ouviu muito e nos conta é a de um cliente que sempre frequentava o bar e certo dia fez uma compra inusitada.


"um dia passou e pediu umas vela, aí brincou com ele disse "é pro velório". "É de quem?" "Pro meu". Aí quando a família dele chegou em casa ele tava já deitadinho na mesa lá mortinho lá, com as velinha lá. "


Embora seja considerada uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP), Ana diz que, na prática, o Armazém Santa Ana não teve o processo para UIP finalizado. As manutenções e reformas necessárias para manter a casa preservada e segura são por conta dos sócios, que não abrem mão de um bom cuidado. “Quando tava no processo [anos 90] eles [prefeitura] nunca ajudaram a fazer nada. A casa ia cair tudo se não... Nós trocamos forro, trocamo assoalho da casa inteira, todas viga, toda trocada”. A plaquinha no monólito de pedra na entrada no Bar, que conta a história do Armazém, bem como o totem na frente do local, “foi algo mais político, de 70, 80 anos do Armazém”, salientou Ana. 


É graças a esse empenho familiar de longa data que hoje curitibanos e não-curitibanos podem aproveitar um pouco da história local, com aromas e sabores marcantes que só encontramos ali, no Armazém Santa Ana. E é bom aproveitarmos enquanto dá, pois não sabemos os infortúnios do futuro e da história. 

Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz


Fonte de pesquisa:  


Silvia Bocchese de Lima: https://www.fecomerciopr.com.br/sala-de-imprensa/noticia/tradicao-e-fidelidade-uma-historia-de-87-anos/


Magaléa Mazziotti: https://tribunapr.uol.com.br/cacadores-de-noticias/uberaba/parada-obrigatoria/


Washington Takeuchi: http://www.circulandoporcuritiba.com.br/2011/06/armazem-santa-ana.html?m=1


https://www.gazetadopovo.com.br/imoveis/um-pouco-de-tudo-no-armazem-santa-ana-ek2ds4xt30we2ivv0r1meh6xa/



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