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Riachuelo: uma rua rebelde

Em meio a muitos animais havia um caminho, bem no centro da pacata vila de Curitiba: uma trilha antiga que ia em direção ao rio Belém e sua várzea. 


Rua dos Veados nunca foi um nome oficial dessa trilha, mas foi o primeiro e em alusão aos animais que ficavam por ali, aproveitando-se de tanta água. Na Câmara Municipal, o primeiro registro aparece nos anos de 1820 como Rua dos Lisboas (ou Rua Lisboa), provavelmente porque ali moravam ervateiros com esse sobrenome: Lisboa. Depois, com a construção de uma fonte de água (a carioca), a rua passou a ser chamada de Rua da Carioca (ou Carioca do Campo ou Carioca da Cruz).

Hoje, no local da fonte, fica a Praça 19 de Dezembro e a rua, desde 1871, é chamada de RIACHUELO, em homenagem ao conflito que deu a primeira grande vitória da Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) na Guerra contra o Paraguai, em 1865: a Batalha Naval do Riachuelo.


Ou seja, começou nas várzeas do Rio Belém e levou o nome do pequeno afluente do Rio Paraná, onde aconteceu um momento decisivo da história do nosso país: o Riachuelo. Quando comentei isso, meus historiadores preferidos (os do Turistória, é claro) responderam: “Como foi no Ipiranga! Até parece que a história do Brasil foi feita em banhados!!!”


Esse é apenas o começo da história de uma rua de Curitiba com características únicas e que é contada num trabalho intenso de pesquisa que leva o nome de “As muitas vistas de uma rua: histórias e políticas de uma paisagem – Curitiba e a Rua Riachuelo”, um verdadeiro tesouro lançado em 2014 pela Editora Máquina de Escrever, também curitibana.


Desde a dedicatória, o livro é inclusivo, na contramão das tentativas de construção de uma imagem de marginalização atribuída a tantos espaços do centro da capital paranaense. O livro é “a todos que fizeram e/ou fazem da Riachuelo uma rua de todo mundo”, incluindo os que perderam seu lugar e os que transgridem. Aliás, a própria rua, desde o início, faz jus ao seu estigma de transgressão. Contam as autoras que, antes mesmo de mudar de nome e à revelia dos primeiros planos de urbanismo da cidade, a Rua da Carioca procurava desviar os banhados do Rio Belém e traçava seu próprio curso, cruzando o rio e seguindo em direção à Estrada da Marinha (ou da Graciosa).


O tempo foi passando e a abertura da Estrada da Graciosa, depois a inauguração do Passeio Público e, principalmente, a construção da Ferrovia Curitiba-Paranaguá em 1885, foram transformações do final do século XIX que levaram não só a Riachuelo, mas todo seu entorno, a um patamar de crescimento nunca antes tão acelerado. A linha dos bondes (ainda de mulas) chegou à Riachuelo e a tornou passagem obrigatória entre as residências de grandes produtores de erva-mate, desde o Alto da Glória e o Passeio, até o conjunto político-administrativo da Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco) e a Estação Ferroviária.


Nos primeiros anos do novo século, o XX, os bondes de mulas foram substituídos pelos elétricos e as casas por construções cada vez mais verticalizadas. Surgem então pequenos prédios e palácios, como o Hotel Martins (foto 2) e o Palácio Riachuelo (foto 3), sob influência do estilo chamado, desde aquela época, de ‘ecletismo’. Mas logo surgem outras tendências, como o art déco, e a verticalização dos sobrados ecléticos dá lugar a uma estética ligada à velocidade e ao futuro. Na metade do século XX, em 1952, o imponente edifício Dona Rosa, na esquina da São Francisco com a Riachuelo, “atropela” as tendências das construções da rua, trazendo à cidade a cultura de “morar em altura” (sic).


Logo depois, em 1953, o Paraná comemorava o centenário de sua emancipação política e muitas obras foram construídas para marcar a data, desde o Centro Cívico, que passaria a centralizar os poderes do Estado e do Município, passando pelas reformas da Rua Barão do Serro Azul e do então Grupo Escolar Tiradentes, até a revitalização da Praça Dezenove de Dezembro. A Rua Riachuelo ficou “acanhada” diante de toda essa movimentação política e arquitetônica, aliada ao crescimento do automóvel como opção de transporte urbano.


A história mais recente da rua nos é contada em detalhes pelos autores (Aline Fonseca Iubel; Dayana Zdebsky de Cordova e Fabiano Stoiev), que vão sempre nos chamando a encarar a Riachuelo não apenas em termos de suas unidades edificadas, mas enquanto PAISAGEM CULTURAL. Essa paisagem inclui sim as edificações (claro), mas o livro amplia muito a visão do leitor sobre conceitos clássicos de patrimônio, convidando para um jogo de narrativa plural que inclui diferentes perspectivas: vistas, discursos, imaginários, caminhos, trajetos, travessias, lugares de forte apelo simbólico, interesses (políticos e comerciais) e mais tantas outras atividades. Nesse jogo, a leitura se torna uma experiência lúdica, onde a gente acaba brincando de aprender história. Mas fica bem claro também que “não se trata de um trabalho em defesa da Rua Riachuelo enquanto patrimônio, mas de uma reflexão sobre todos esses discursos”, os formais e os informais.


Esses pontos de vista partem de “diferentes grupos étnicos e classes sociais, atores de diversas atividades, comerciais ou não, de uma rua que insiste em escapar aos contornos que lhe são impostos”. Veja o exemplo de um dos restaurantes mais chiques da cidade, o primeiro de culinária francesa, ter permanecido por mais de 64 anos bem próximo a bares e até botecos bastante populares. Sim, de 1957 a 2021, o endereço do Restaurante Île de France foi: Rua Riachuelo, 538 (Foto 5). Desde outubro de 2021, o restaurante passou a atender no bairro do Batel.



O livro do qual falamos aqui foi publicado em 2014, logo após a execução de um dos maiores projetos de revitalização da Rua Riachuelo. Atualmente, depois de novas reformas, discursos e restaurações, ela segue sua sina de uma rua que insiste em escapar aos contornos que lhe são impostos, uma rua com personalidade, e personalidade forte.

Esse artigo termina citando um trecho (ou seria um convite?) do próprio livro, que personifica a nossa Riachuelo, a rua mais plural de uma Curitiba tão universal. Aproveite:


“Uma rua indomável, rebelde, para a qual não cai bem a tentativa de leitura homogeneizante daqueles que pretendem intervir nela ou colocá-la nas caixinhas classificatórias das políticas públicas”.


Texto e pesquisa de Cyntia Wachowicz


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