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"Maria Bueno: a Gabriela curitibana", por Ruy Wachowicz

O texto abaixo se trata de um artigo de autoria do historiador Ruy Wachowicz, publicado originalmente na edição 45 da revista paranaense "Nicolau", em outubro de 1992 -  todos os volumes desse periódico podem ser encontrados no site da Biblioteca Pública do Paraná, cujo link está nas referências aqui da publicação.


Esse artigo foi reproduzido fielmente pelo Turistória, em virtude da sua qualidade inigualável e também do tema, que se mostra mais do que atual.


Observação: intitulado "Maria Bueno: a Gabriela curitibana", este escrito de Wachowicz deve ser lido como um texto de 1992. Por isso, determinados vocábulos, expressões e conceitos empregados pelo autor refletem o contexto em que ele estava inserido.


***


Artigo:


Porção lendária na geografia sensível de Curitiba, Maria Bueno, morta em 1893, é até hoje cultuada como santa. Desmontando o mito, o historiador Ruy Wachowicz investiga os fatos e desvenda, sob o manto da crendice, a figura comum dessa mulher degolada em triste cena de ciúme. 


Ruy Wachowicz


Maria Bueno: a Gabriela curitibana


Até os primeiros anos do regime republicano, Curitiba era ainda uma cidade muito modesta em expansão territorial e desenvolvimento. Na parte oeste (excluindo a Rua Emiliano Perneta), a ocupação territorial não passava do Largo General Osório.


Somente em 1884 é que foi construída a ponte sobre o “rio” Ivo, a qual tinha a finalidade de dar trânsito entre a Rua da Imperatriz (atual XV de Novembro) e a Av. Luiz Xavier, então sem denominação. Na parte norte desta última, existiam algumas casinhas de taipa, cobertas com telhas-goiva. Essas casas estavam encostadas umas nas outras e cada uma possuía externamente apenas uma porta e duas janelas. Era ali a sede do bas-fonds proletário da capital. Os nomes dos estabelecimentos ali existentes sugerem as classes sociais que os frequentavam: “La Pavula”, “Chora Vintem”, “Abrigo de Malandros”, etc. Devido à semelhança dessas casinholas, a população alcunhou-as genericamente de “vagões”. A entrada assemelhava-se a verdadeiras cancelas de meias portas, que na realidade apenas faziam o papel de tapagens para os transeuntes da rua.


No interior desses vagões havia reservados de meia parede, conhecidos por “baias”. Pelas madrugadas, elevavam-se dessas “baias” gargalhadas das messalinas, fumaça de cigarros baratos e barulho de copos e garrafas. Bem no fundo desses boars corria solta a jogatina: baralho, dados e víspora.


Após cada assalto que ocorria na cidade, a polícia costumava fazer “batidas” nesses “vagões”, à procura dos objetos furtados e dos seus “novos donos”.


Com a construção da ponte sobre o Ivo em 1884, aumentou a circulação de veículos e pedestres nessa arte da cidade. O novo ambiente tornou-se muito incômodo para as finalidades dos “vagões”. Procuraram então um lugar mais isolado e discreto. Encontraram-no do outro lado do Largo da General Osório. Essa futura praça estava ainda praticamente abandonada, coberta de mato, sobretudo na sua parte norte. Em dias de chuva, era quase intransitável. Do outro lado do largo, o município estava orientando e alinhando casebres que estavam em construção. Surgia uma nova rua, que se denominou Campos Gerais, posteriormente Santos Dumont e finalmente Vicente Machado.


Essas modestas construções de madeira estavam muito isoladas, cercadas de brejos formados pela água que vinha do Alto Cubatão (Alto da Vicente Machado).




A parte baixa, onde estavam surgindo essas edificações, era chamada de Chapada do Cubatão; estava isolada da Rua do Mato Grosso (atual Comendador Araújo) por um espesso bosque e do Largo da General Osório por uma casarão que precisava ser demolido, pois atrancava a comunicação. Esse ambiente isolado e segregado favorecia a instalação de “casas suspeitas”.


Operários dos engenhos de mate e soldados dos quartéis formavam a base de sua clientela. Ali, no segundo quarteirão da Rua dos Campos Gerais (entre as atuais Visconde de Nácar e Visconde do Rio Branco), é que foi encontrada assassinada barbaramente Maria da Conceição Bueno. Entre a Av. Vicente Machado e a Rua Carlos de Carvalho, atuais, existia então um capão de mato, onde foi encontrado, na manhã do dia 29 de janeiro de 1893, quase que degolada por um golpe de navalha, o corpo dessa mulher. Havia sinais de luta e suas mãos estavam cortadas por arma branca.


No dia seguinte, saía publicada no jornal “Diário do Commercio” a primeira notícia pública da existência de Maria Bueno. Segundo a nota, Maria Bueno “era uma dessas pobres mulheres de vida alegre, mas inofensiva criatura de quem a polícia não tem a menor queixa de seus arquivos”. Prosseguia a notícia: “Nas mãos da infeliz, talhos profundos como de cortante navalha, que fora segurada nas tréguas medonhas do desespero (...). Pelo que vemos, há ali uma triste cena de ciúmes em que o crime, como sempre, é o propulsor de vinganças e ódios”.


Outra notícia jornalística sobre o crime foi publicada pelo periódico “A República” de 1º de fevereiro de 1893. Diz ela: “Achando-se indiciado como autor do crime o anspeçada (antigo nível entre soldado e cabo) do 8º Regimento de Cavalaria, Ignácio José Diniz, que, estando de guarda no quartel fugira à meia-noite, apresentando-se às quatro horas da madrugada, mais ou menos. Este praça estava amasiada com a infeliz Maria e com ela queria casar-se ultimamente. É voz geral ser Diniz o culpado, mas ao certo nada se pode dizer, pois do depoimento das testemunhas nenhum esclarecimento ainda se tem colhido”.


Por seu turno, “A Federação” de 1º de fevereiro de 1893. Embora noticiando o fato de forma lacônica, conclui que um crime tal, “nunca foi visto nestas plagas”.

Mas, afinal, quem teria sido essa criatura: Maria Bueno, que apesar de passados quase cem anos de sua morte, ainda recebe culto e centenas de devotos esperam dela milagres e curas para seus problemas físicos e morais? Seus devotos espalharam sobre ela lendas que agora dificultam, aos historiadores, encontrar a realidade dos fatos.



Uma pobre mulher de vida alegre


Existem muitos artigos e até livros escritos sobre Maria Bueno. A maioria dessas publicações é orientada por interesses filo-religiosos, segundo a seita ou religião a que pertence o respectivo autor. O trabalho mais longo sobre o assunto foi feito pelo major do exército Izidoro Pereira, o qual foi escrito “por uma força vinda do mundo invisível”. Deixamos propositalmente essa “inspiração” do major Pereira de lado e fundamentamos nosso estudo basicamente em documentos oficiais da época do crime, levantados pela polícia, notícias jornalísticas (ao que nos parece, sem comprometimentos ideológicos ou religiosos com o problema), como também na primeira reportagem surgida sobre Maria Bueno, dada à publicidade pelo jornal “Gazeta do Povo”, em 18 de janeiro de 1934, de autor desconhecido.


Desta forma, pudemos apurar que Maria Bueno era uma lavadeira de cor parda, de mais de quarenta anos, que habitava, no final da Rua Saldanha Marinho, uma casa de madeira, situada bem próxima da Chapada do Cubatão e da Rua Campos Gerais. Ali vivia maritalmente com seu companheiro, natural do Estado da Paraíba: Ignácio José Diniz, anspeçada do exército brasileiro, crioulo, e barbeiro da profissão civil. Na época do crime, servia no 8º Regimento de Cavalaria em Curitiba, com o quartel localizado em frente ao que é hoje a Praça Oswaldo Cruz.


Maria Bueno era uma pessoa muito simpática, de expressão bondosa e corpo bonito. Demonstrava especial carinho no seu relacionamento com as crianças e com as pessoas mais próximas. Sua figura física e a conduta psíquica lembram, sem dúvida alguma, a personagem Gabriela, criada pelo escritor baiano Jorge Amado, em um dos seus romances.


A extroversão e a alegria de Maria Bueno perturbavam o cabo Diniz, que exigia cada vez mais a exclusividade das atenções de sua companheira. Esta, por seu lado, foi cansando dos ciúmes de Diniz e demonstrava sinais de querer separar-se dele.




Nesse contexto, o cabo Diniz, roendo-se de ciúmes, resolveu “lavar a honra”, perpetrando um crime passional: típica ação de um machão dos velhos tempos.


Nesse ínterim, os revolucionários federalistas chefiados pelo maragato Gumercindo Saraiva, entraram em Curitiba. Diniz, que já havia sido excluído das fileiras do exército, engajou-se nas tropas do caudilho rio-grandense.


Enquanto esses fatos ocorriam, a população de Curitiba estava duplamente traumatizada: primeiro, pelos percalços e angustias da ocupação da cidade pelas tropas maragatas, e, segundo, pela absolvição do considerado assassino de Maria Bueno.


Não temos notícias de como transcorreu o julgamento. O próprio processo policial do caso Maria Bueno desapareceu dos arquivos judiciários. A absolvição do criminoso incentivou, entre a população crédula, a idéia de que Maria Bueno era inocente e mártir.


As circunstâncias traumáticas da morte do presumível assassino de Maria Bueno fizeram surgir e crescer a interpretação de uma interferência divina, direta, para que se fizesse justiça mediata.


A morte do anspeçada ocorreu no mês de abril de 1894. O cabo Diniz e um companheiro passeavam pela Estrada da Graciosa, na altura do bairro do Atuba. Resolveram então assaltar a casa de um comerciante. Mataram um homem e levaram uma mula “ruana” arreada. A denúncia foi levada diretamente à essa do comandante-em-chefe federalista Gumercindo Saraiva. Este, no quartel da Praça Oswaldo Cruz, ordenou imediatamente o toque de reunir: os assassinos e ladrões foram reconhecidos e um deles confessou onde estava a mula, que foi encontrada e devolvida aos legítimos donos.



Enterrada como indigente


O historiador David Carneiro, sem afirmar que um dos envolvidos era o assassino de Maria Bueno, escreveu: “Reconhecidos os culpados, confessos, mandou fuzilá-los sumariamente na praça que demora a frente do antigo quartel da 8. Cavalaria”. (Os Fuzilamentos de 1894 no Paraná – Athena Editora, Rio de Janeiro, 1937, p. 38.)


A notícia do fuzilamento de Diniz e as circunstâncias patéticas do mesmo caíram sobre a população como se fossem ações da justiça divina. Maria Bueno começava a subir na imagem popular, como detentora de um ato de martírio.


Se Maria Bueno realmente tinha uma conduta “normal”, pergunta-se: por que o clero católico se recusou a encomendar seu corpo e a celebrar a missa de sétimo dia? Que atividades outras tinha a falecida, capazes de levar os padres a tomarem tal atitude? Essa negativa seria apenas porque era considerada mulher da vida, ou era praticante de uma outra religião?


Esse comportamento do clero, certamente, atiçou as correntes religiosas minoritárias a tomarem conta do caso e estimularem o mito em torno de Maria Bueno.


Uma cruz foi colocada no terreno baldio onde foi quase decapitada, velas eram acesas, seguindo-se preces e pedidos de graças. Procurou-se ligar com ênfase o culto de Maria, mãe de Jesus, com o de Maria Bueno.




O estribilho do hino a Maria Bueno demonstra o evidenciado:


Maria, Maria, Maria da Conceição

Volve os teus olhos e atende

O teu povo em oração!


Apesar de enterrada como indigente, no fundo do campo santo, erigilham-lhe no cemitério, na parte da frente, um túmulo com uma pequena capela. Os romeiros começaram a aparecer e seu número aumentava a cada ano. Membros de seitas religiosas dispuseram-se a assumir a divulgação de seus apregoados milagres. Orações à “santa” foram impressas e distribuídas.


Difundiu-se a interpretação de que ela teria morrido para salvaguardar sua castidade e virgindade. Criou-se ao seu derredor uma nova figura de Maria Bueno, numa auréola de “santidade”.


Criou-se a Irmandade Maria Bueno para difundir sua devoção e cuidar de seu tumulo. Fizeram-lhe uma estátua de tamanho natural, a qual foi pintada de cor alva, alvíssima, como se parda não pudesse ser a cor de uma “santa”.


O cio iconoclasta dos novos crentes no maravilhoso fez os mesmos repudiarem ou ignorarem os poucos documentos históricos existentes sobre sua vida e morte. Elevaram-na à categoria de virtuosa donzela, além de visível manifestação de racismo subliminar.


Maria Bueno, a Gabriel curitibana, foi vítima de sua própria maneira de ser, que não contava com a violência favorecida pelo meio onde vivia, nem com o simplismo na formação de um imaginário, que a transformasse em santa, branca e donzela.




Referências




WACHOWICZ, Ruy. "Maria Bueno: a Gabriela curitibana". Revista Nicolau, Curitiba, setembro-outubro, ano VI, Nº 45, 1992, pp. 22-24.


https://www.bpp.pr.gov.br/Pagina/Nicolau-Fac-similar

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