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A história do Hospício Nossa Senhora da Luz

Anos atrás, o primeiro e mais longevo hospício de Curitiba, o Nossa Senhora da Luz, foi tema de uma tese de doutorado em História, escrita pelo historiador Maurício Ouyama. Intitulada “Uma máquina de curar: o hospício Nossa Senhora da Luz em Curitiba e a formação da tecnologia asilar (final do século XIX e início do XX)”, a tese discute, entre outras questões, a história dessa instituição psiquiátrica centenária da cidade.

 

Aproveitando-se dessa pesquisa e dos atuais debates sobre a saúde mental, suscitados pelo Dia Mundial da Saúde Mental, em 10 de outubro, hoje contamos a história do Hospício Nossa Senhora da Luz, cuja origem representa o exato avesso de como, hoje, as pessoas com doença mental são tratadas.

 


O tratamento a doenças mentais no Brasil do século XIX

 

Alguns dos maiores escritores brasileiros, como Machado de Assis e Lima Barreto, já contestavam os tratamentos a doentes mentais há mais de um século. Os motivos dessa discordância são compreensíveis. Desde o final do século XIX até os anos de 1930, a loucura e outras doenças mentais eram vistas como um “produto da degenerescência física, moral e intelectual do homem”. Em outras palavras, os doentes mentais eram tidos como degenerados e defeituosos, “frutos estragados”.

 

Para “corrigi-los”, foram pensadas políticas públicas de terapia. Até a metade do século XIX, em Curitiba e outras cidades do Brasil inexistia um conceito definido para nomear os doentes mentais, muito menos instituições especializadas para o seu tratamento.

 

As figuras do alienado e do alienista enquanto tal somente surgiram no Rio de Janeiro, no segundo reinado. Nesse início, o louco permanecia recluso no ambiente familiar, que o segregava da sociedade. Já os despejados pela família erravam pelas cidades, sendo muitas vezes presos e depois encaminhados para instituições de caridade, onde encontravam asilo.

 

Em Curitiba, o contexto era exatamente esse. O historiador Maurício Ouyama conta melhor essa história. Segundo ele, eram muitos os doentes mentais encarcerados na cadeia pública, e depois mandados para a Santa Casa de Misericórdia, a única instituição da cidade que assistia os alienados. Não se tinha como objetivo curá-los, mas fornecer-lhes um abrigo, pois eles eram vistos como doentes morais para os quais a única solução seria a compaixão.

 

Essa perspectiva muda de figura no final do século XIX, quando os doentes mentais passaram a ser considerados degenerados e, por isso, corrigíveis. Foram inaugurados pelo Brasil vários hospícios (popularmente chamados de asilos), justamente com o intuito de isolar os indesejáveis da sociedade e interná-los, ao invés de abrigá-los em instituições de caridade.

 

O hospício era uma instituição fechada especializada no isolamento, no controle, na vigilância e no tratamento de pessoas diversas, caracterizadas como loucas. Instituições semelhantes, também fechadas, surgiram no país nesse mesmo período e com a mesma finalidade corretiva, como as prisões, os leprosários, os abrigos de mendigos e os orfanatos. A isso Ouyama chama de tecnologia do isolamento: um laboratório social onde o ser humano indesejável pudesse ser “reprogramado do zero”.

 

A inauguração do Hospício Nossa Senhora da Luz

 

Dentro da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, já se sabia da inauguração de hospícios no país, como o de Porto Alegre, em 1884. Então, a Santa Casa passou a estudar, por meio de uma comissão, a possibilidade de construção de um “Asilo de Alienados”, justamente para criar um espaço diferenciado para o tratamento da loucura, o hospício. O responsável por isso foi o padre D. Alberto Gonçalves, que assumiu a gestão da Santa Casa em 1897, onde permaneceu até 1908.

 

Assim explica Maurício Ouyama:

 

“Um das primeiras iniciativas dessa comissão foi a procura de um terreno ideal para a construção do Hospício. Na década de 1880, em Curitiba, havia sido feito o projeto de construção de uma Penitenciária do Estado no bairro do Ahu. A cerimônia da pedra inaugural da Penitenciária havia sido celebrada durante a visita do casal imperial a Curitiba em 1880. Nesta mesma visita, D. Pedro II assistiu a inauguração do Hospital de Caridade da Santa Casa e o lançamento da pedra inaugural da Penitenciária do Estado. Mas, na década de 1890, este projeto havia sido abandonado por falta de recursos. Foi nesse terreno, cedido pela prefeitura à Santa Casa de Misericórdia em 1895, que a comissão formada por D. Alberto resolveu construir o primeiro asilo de alienados no Paraná.”

 

A construção do Asilo começou já em 1896, nas longínquas terras do Ahú, isoladas da cidade. Em 25 de março de 1903, foi realizada uma pomposa cerimônia de inauguração do primeiro hospício do Paraná, nomeado de Hospício Nossa Senhora da Luz. Dias antes, o jornal curitibano Diário da Tarde anunciou da seguinte forma a inauguração:

 

“Dentro de poucos dias esses infelizes que perderam a razão, muitos dos quaes se acham aglomerados em logares impróprios, sem os requisitos scientíficos, reclusos até em prisões correcionais serão instalados em suas cellas, onde nada lhes faltará e onde serão relativamente mais felizes, apesar de desgraçados sempre” (DIÁRIO DA TARDE 17/03/1903).

 

Com isso, surgia também a psiquiatria no Estado, embora os médicos tivessem pouco poder dentro do hospício, que continuou a ser administrado pela Santa Casa.


Novas e atuais instalações

 

Dois anos depois, em 1905, o governo do Estado decidiu que as instalações do hospício poderiam servir como penitenciária, e por isso propôs um acordo com a Santa Casa. Em troca de seu asilo, a instituição recebeu um terreno com 4 alqueires, também isolado da cidade na época, que fica atualmente na esquina da atual Av. Marechal Floriano Peixoto com a Presidente Kennedy. Na época, a Marechal era chamada de “Rua São José", e a região de “Prado Paranaense”. Em 1909, no antigo hospício foi inaugurada a Penitenciária do Estado, a primeira do Paraná, que depois viria a se chamar “presídio do Ahú”.

 

A construção do novo hospício durou dois anos e ele foi inaugurado em 7 de julho de 1907. Foram feitos três pavilhões separados, um para cada tipo de doença mental; posteriormente, o complexo foi aumentado, pois a demanda era grande (em 1910, foram internadas 218 pessoas). Em 1923, por exemplo, foi construído o Pavilhão André de Barros, de frente para a Avenida Marechal Floriano Peixoto, e que abrigou a sede administrativa do hospital, a capela e a clausura das irmãs de São José de Chambéry.

 

O Asilo era visto como a única saída para a recuperação dos alienados, sendo que muitos lá ficavam por tempo indeterminado, pois muitas eram as famílias que os abandonavam. Segundo Ouyama, essas instituições eram tidas como "máquinas de curar” através da disciplina.

 

Como nota, vale destacar que, durante a pandemia de gripe espanhola, que durou de 1918 a 1920, foram vitimados vários internados, incluindo, também, dois dirigentes do Nossa Senhora da Luz: o Dr. Antônio Rodolpho Pereira de Lemos e seu filho, o Dr. Cláudio Pereira de Lemos.

 

Em 1938, com os avanços na psiquiatria e com o início das críticas ao modelo de hospício, o Nossa Senhora da Luz teve o seu nome alterado para Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz. Nessa altura, outros hospitais dessa natureza foram surgindo na cidade. 

Dias atuais

 

Após 97 anos gerido pela Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, o Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz passou a ser administrado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em 2000, em parceria com a Santa Casa.

 

A instituição médica continuou a funcionar normalmente e em moldes parecidos aos aplicados desde o seu início, mas com ligeiras mudanças, já que a psiquiatria se desenvolveu muito nos séculos XX e XXI. As pessoas com doença mental, termo hoje mais aceito, passaram a ser tratadas com mais dignidade tendo em vista o respeito aos direitos humanos, a partir de terapias modernas e não-violentas/disciplinares.

 

Além disso, o próprio modelo hospitalar de tratamento psiquiátrico passou a ser contestado. Talvez isso tenha influenciado a PUCPR a encerrar as atividades do Hospital Psiquiátrico em 2013, conforme revela, ainda em 2003, a fala do diretor-geral e administrativo do hospital, Dagoberto Hungria Requião:

 

 “A evolução da pesquisa em saúde mental e o desenvolvimento de novos medicamentos fizeram com que o hospital integral ficasse apenas para os psicóticos graves, que são pacientes que não têm condições de permanecer na comunidade. Hoje, o hospital é um centro ativo de tratamento, que busca a recuperação no menor tempo e a reinserção social”.


Após o fechamento do hospital psiquiátrico, grande parte dos pavilhões do complexo foi desativada; uma delas chegou a desabar em 2017. Hoje, em alguns prédios há ambulatórios, dependências hospitalares e até sala de pesquisas do Grupo Marista.

 

A antiga sede do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz é uma Unidade de Interesse de Preservação, e continua a ser administrada pela PUCPR. Embora alguns dos pavilhões tenham sido demolidos, outros estão de pé, reformados e preservados, como o André de Barros.


Abaixo, fotografias tiradas há alguns anos por Washington Cesar Takeuchi, do blog Circulando por Curitiba (as fotografias estão neste e neste link)

O Hospício da Luz, Asilo de Alienados ou simplesmente Asilo representa um importante capítulo da história de Curitiba e da psiquiatria na cidade, e também revela o modo como as pessoas com doenças mentais foram vistas e tratadas. É importante não cometer julgamentos, os tempos eram outros e as práticas, também. Mesmo assim, o nosso passado precisa ser conhecido e preservado, para que não cometamos os mesmos erros.


Se você quiser conhecer melhor o cotidiano do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz, sugerimos que assista ao documentário “Ruínas da Loucura” (2008), dirigido por Karine Emerich e Mirela Kruel. O link é este: (https://www.youtube.com/watch?v=l6F-t01OGlY)

 

Nota sobre o presídio do Ahú


Inaugurado em 1909, a Penitenciária do Estado, ou Prisão Provisória de Curitiba, funcionou ininterruptamente por mais 95 anos, até ser fechada em 2006. Quando extinto, o “presídio do Ahú” tinha capacidade para 584 detentos, mas sua lotação média era bem maior. Os mais de 900 detentos do local foram remanejados para o Centro de Detenção e Ressocialização de Piraquara. Muitos perseguidos políticos ali ficaram presos durante a ditadura militar.


Logo depois o fechamento da penitenciária, foram gravadas cenas do filme Estômago (2007) no local, sobre o qual já escrevemos aqui, no artigo do Bar Palácio. Anos mais tarde, todo o complexo foi reformado.


Existiram vários projetos para o presídio: assim que desativado, pensou-se em demoli-lo para a construção de um conjunto habitacional, um shopping e até um supermercado. Em 2003, foi decidido pela transferência do complexo ao Tribunal de Justiça do Estado. Desde 2018, após anos de reforma, no mesmo local do antigo hospício e da finada penitenciária funciona, em prédio moderno, o Fórum Criminal e os Juizados Especiais de Curitiba.


Especulou-se a criação de um museu para contar a história do presídio no local, mas, pelo que sabemos, ele não existe. Já a história do antigo Hospício Nossa Senhora da Luz, da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, da medicina e da psiquiatria no Paraná, mantém-se preservada e pesquisada no Museu da História da Medicina do Paraná.


Abaixo, uma foto de 2006 do presídio, de autoria desconhecida, e uma atual do Fórum e do Juizados, também de autoria desconhecida.

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